Anunciação

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    Anunciação

    Álvaro Pires de Évora -

Comprada em fevereiro de 2018 pelo Estado português com a contribuição do Grupo dos Amigos do MNAA, esta Anunciação é a primeira incorporação de uma pintura de Álvaro Pires de Évora na coleção do MNAA. Representa um grande acontecimento na história deste museu por se tratar de um quadro que, apesar da sua pequena dimensão, abre uma grande janela ao visitante sobre a pintura portuguesa no século XV.

Desde há muito que nos habituámos a considerar como obra fundadora o conjunto dos Painéis de São Vicente e a tomar a magistral arte de Nuno Gonçalves (ativo de 1450 a 1492), exposta nesta sala, como ponto de partida de uma narrativa da pintura portuguesa que se vai ensaiando nas salas sequentes. Porém, ainda nas primeiras décadas do século XV, bem antes de Nuno Gonçalves, num tempo em que D. João I (rei, 1385-1433) teve ao seu serviço um pintor florentino (dito António Florentim), um outro pintor português se encontrava ativo e com obra hoje plenamente identificada (cerca de 30 pinturas), embora o seu nome não conste de nenhum relato biográfico circunstanciado ou de muitos documentos da época. Quase apenas o co­nhecemos pela forma como deixou assinadas algumas das suas criações; por exemplo, a assinatura que subsiste num painel retabular da igreja de Santa Croce em Fossabanda, Pisa, Itália: «ALVARO PIREZ DEVORA PINTOV». Do patronímico, «Évora», deduzimos a sua terra natal mas a nacionalidade do pintor é ainda atestada por Giorgio Vasari, na biografia de Taddeo di Bartolo (Le Vite de’ piú eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani…, 1568), que aí o nomeia como «Alvaro di Piero di Portogallo».

O paradoxo deste despontar da pintura portuguesa reside, com efeito, na circunstância de Álvaro Pires ser um «estrangeirado», um pintor português apenas documentado na região italiana da Toscana entre 1410 e 1434, ativo em cidades como Prato, Lucca, Volterra e Pisa. Um artis­ta plenamente integrado nos códigos de representação, recursos materiais e virtuosismo técnico da pintura do centro de Itália nos inícios do século XV e que pode ter acompanhado Gherardo Starnina, a partir de Castela ou Valência, no regresso deste mestre florentino à Toscana, em 1401. O que conhecemos da obra de Álvaro Pires define-a como claramente italiana e produzida em Itália por um pintor ainda preso a modelos «góticos» nas vésperas do Renascimento florentino. Mas Álvaro Pires não deixa também de ser o primeiro pintor nascido em Portugal a quem podemos seguramente atribuir uma obra artística. Por isso, ele deve ser considerado entre as personalidades «fundadoras» da pintura portuguesa ao mesmo tempo que faz parte, por histórico direito, de uma das correntes identitárias da pintura italiana do Quattrocento.

Provavelmente realizada como obra de devoção privada, esta Anunciação, datável da parte final da carreira de Álvaro Pires, é uma das suas pinturas de mais elevada qualidade. Um sentido de impressiva graça decorativa exprime-se nos tecidos em vermelho e nos motivos realizados a punção sobre o fundo dourado do painel, bem como um particular virtuosismo se evidencia na sensível elegância expressiva das figuras da Virgem e do Arcanjo Anunciador, neste se concentrando, em azuis, vermelhos e dourados, todo a requintada paleta de Álvaro Pires e um domínio excecional do desenho, claro e apurado, que o coloca como excelente intérprete dos cânones da pintura «gótica» entre Siena e Florença. Como notou Federico Zeri (Qualche Appunto su Alvaro Pirez, 1973), a figura da Madonna Anunciada revela uma significativa influência de Lorenzo Monaco, enquanto as esplêndidas asas do Arcanjo Gabriel constituem uma direta inspiração na célebre Anunciação de Simone Martini (Uffizi, Florença).


JASC


Folha de Sala
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